29 de março de 2007

Coração de Gás Neon


A trajetória de um personagem em meio a devaneios, fracassos e angústias que sofre após perder seu amor, e quando decide encontrá-lo numa busca desesperada. Ora indo por dentro da chuva, ora esperando numa mesa de bar, esse personagem anônimo expõe sua intimidade, retratando a solidão e apresentando uma visão dramática do mundo urbano moderno.


A escolha foi em função do Caio. Texto algum dele não poderia faltar no Festival nem nós poderíamos perder.

E em todos os momentos do espetáculo é possível enxergar Caio Fernando Abreu expondo seus pensamentos e angústias, o que foi, certamente, o grande mérito da peça. Um cenário onde todas as coisas ajudam a lembrá-lo, desde o colchão no chão, os cigarros, o caderno de anotações, o som ao lado da cama, o montinho de lenços de papel amassados no chão - detalhe este com o qual também eu e minha rinite alérgica nos identificamos instantaneamente - até o ator Andy Grecker, de semelhança física inegável.

A música foi parte integrante do espetáculo e presenteou a platéia com uma trilha sonora de combinação particular. Melhor ainda foi o próprio personagem selecionando as músicas conforme o que ele queria ouvir e qual música era melhor para o momento. Somada ao texto, diria que foi o toque de mestre para emocionar as pessoas. Eu mesma sentia as lágrimas brotarem com uma facilidade incrível, sendo que, embora bonita, a encenação, ela mesma somente, não comoveria assim.


Nosso personagem está na fossa. Foi abandonado e agora curte altas doses de tristeza e espera. Enquanto isso, relembra.

Relembra o momento da despedida, quando ele tentava dizer todas as coisas, "essas coisas difíceis, que não encontram palavras para serem ditas". E na sua recordação e na busca pelas palavras, é atropelado pelo outro que parece viver na superfície, preocupado com os cigarros, em comprar maçãs ou em encontrar uma revista para ler na viagem, diferentemente dele, que sempre vai até o fundo.

Nessa ânsia meio caótica, encontra metáforas que usaria para se explicar ao outro e as anota no caderno, perde o fio da meada, recomeça o discurso e se atrapalha, como quando pronuncia uma frase que leva à letra de uma música: eu preciso te falar e, imediatamente, corre até o microfone instalado ao lado da cama e continua, desta vez, cantando: te encontraar de qualquer jeito...eu preciso respiraaar o mesmo ar que te rodeeeia...

Consome-se na dúvida: “Você seria aquilo que eu via, ou aquilo que eu queria ver em você? Eu sempre achei que 'amar' fosse 'conseguir ver', e que 'desamar' fosse 'não mais conseguir ver'.

Até concluir, ainda em dúvida:

“Talvez as coisas que me fascinavam em você nem fossem suas, mas minhas.”

Abrindo parênteses, um processo de auto-sedução bem típico mesmo. Os que se entregam para alguém dotado de alguma habilidade (e nenhum amor) sempre correm o risco de se apaixonarem pelo seu reflexo no outro. Como diria o Marco, isso é tudo tão humano. Fecha parênteses.

Relembra uma noite fria e chuvosa em que percorria a cidade molhado, carregando uma garrafa de conhaque, atormentado pelo desejo de bater à porta do outro e, em devaneios, se imagina recebido com um abraço, convidado a se sentar à lareira, onde beberiam o conhaque juntos ouvindo música cantada por alguma voz rouca. Tudo muito diferente do que ocorre na realidade, no entanto.

Relembra sua espera sozinho num bar, incomodado com o casal sentado ao lado, imaginando que o casal sentia pena de vê-lo naquela situação e nos derrama toda a sua angústia e solidão.

Por fim, um texto belíssimo e muito sincero que não foi encenado com a carga dramática que merecia. A impressão mais pura nos levou a concluir por uma certa pretensão em utilizar um texto tão rico e profundo numa atuação tão pouco convincente.

As fotos, com os devidos créditos, são daqui e daqui.

Um comentário:

CAROLINA disse...

Pois é, né.

Escreveste tudo, Merilú, pouco sobrou para comentar que já não tenha sido dito. Veja que essa foi realmente a melhor trilha sonora de todos os tempo, eu bem tentei decorar uns pedeços das músicas pra procurar no amigo google, mas quem disse.

A música foi uma segunda personagem em cena, eu diria, emocionando ela mesma muito mais do que a atuação. Impressionante que, juntando o texto do querido Caio - que quando dá pra ser dramático, sai de baixo - e as músicas lindas e sofridas, as lágrimas vêm, sem o menor controle. Mãs, uma vez desligada a música, desligou-se também automaticamente a torneirinha, porque a coisa não se sustentou sozinha, infelizmente.

Foi aí, justamente aí, que começou a minha comparação involuntária e ingrata com Guilherme Weber. Daí ferrou-se né, que praticamente ninguém satisfaria nestas condições.

E o mais engraçado foram os comentários praticamente iguais feitas por nós duas, as mesmíssimas coisas passaram pelas quebeças de ambas. Almas gêêêêmulas, enfim.