3 de maio de 2007

Cortázar, Julio

Entre a Maga e mim cresce um canavial de palavras, estamos separados só por algumas horas e alguns quarteirões e já a minha pena se chama pena, meu amor se chama amor...Irei sentindo cada vez menos e recordando cada vez mais, mas o que é a recordação, afinal, senão o idioma dos sentimentos, um dicionário de rostos e dias e perfumes que voltam como os verbos e os adjetivos no discurso, adiantando-se disfarçados, à coisa em si, ao presente puro, entristecendo-nos ou lecionando-nos vicariamente até que o próprio ser se torna vicário, o rosto que olha para trás abre muito os olhos, o verdadeiro rosto se mancha pouco a pouco como nas velhas fotografias e Jano, de repente, é igual a qualquer um de nós. Vou dizendo isso tudo a Crevel, mas é com a Maga que estou falando, agora que estamos tão longe um do outro. E não lhe falo com as palavras que só serviriam para que não nos entendêssemos, agora que já é tarde começo a escolher outras, as dela, as envoltas naquilo que ela compreende e não tem nome, auras e tensões que crispam o ar entre dois corpos ou enchem de ouro em pó um quarto ou um verso. Mas não vivemos assim o tempo todo, lacerando-nos docemente? Não, não vivemos assim, ela quis, porém uma vez mais voltei a instalar a falsa ordem que estimula o caos, a fingir que me entregava a uma vida profunda da qual só tocava a terrível água com a ponta do pé. Existem rios metafísicos, ela nada por eles como aquela andorinha está nadando pelo ar, girando alucinada, em torno do campanário, deixando-se cair para melhor levantar com o impulso. Eu descrevo e defino e desejo esse rios; ela nada por eles. Eu os procuro, os encontro, olho-os da ponte, e ela nada por eles. E, sem o saber, igualzinha à andorinha. Não precisa saber, como eu; pode viver na desordem sem que nenhuma consciência de ordem a retenha. Essa desordem é a sua ordem misteriosa, essa boêmia do corpo e da alma que lhe abre de par em par as verdadeiras portas. A sua vida não é desordem, a não ser para mim, enterrado em preconceitos que eu desprezo e respeito ao mesmo tempo. Eu, condenado a ser absolvido irremediavelmente pela Maga, que me julga sem saber. Ah, deixa-me entrar, deixa-me ver algum dia da mesma forma como vêem os teus olhos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu AINDA não li este livro... mas gostei do trecho... como é difícil dizer o que se sente... como é difícil saber o que o outro sente, o que afinal ele está fazendo quando faz certas coisas??? Acho que preciso ler este livro... rs

beijos